terça-feira, 23 de dezembro de 2008

És mola

uma velhinha rastejava,
qual serpente moribunda,
pela calçada irregular.

alcançando sua cabeça,
arranquei as poucas escamas
que ainda lhe acompanhavam.

ou emprestei a caridade
de um breve sorriso.

não lembro bem agora.

sábado, 20 de dezembro de 2008

Ode à imaginação

No barco da minha história,
és a quilha com que corto
as ondas de tristeza.

Na pororoca do desejo,
és onde me agarro
com todas as forças.

Nunca me deixe,
doce, amarga, salgada
e ácida imaginação.

Me vê um bem recheado

É normal
sair do quarto
sem abrir a porta?
Viajar pelo universo
recostado em coxas?
Subir à plenitude
com as cordas
de um pescoço?
Cantar o refúgio
com o calar de tudo?

E flutuar entre árvores
da varanda de uma casa?
É normal?

Não que eu me preocupe
com o normal,
é que me delicio
com os sonhos.

Sonho!
Te chamaria assim
se você já não
tivesse um nome.

O muro-alvo/alvo

O alvo do muro militarizado
pode muito bem virar
o outdoor do nosso espaço.

Basta que pulemos esse
com o peso de mãos-asas.

Amigos, a pronúncia do novo
vem das manchas do antigo,
vem pra manchar ainda mais
a escravidão do uniforme
com as vivas cores da luta.

Use chapéu nesse verão

Cadê você?

passei alguns dias
contigo na cabeça.
Na primeira queda
já fosse abandono.

vemcáchegavolta,
evito a lembrança
de procurar o mesmo
velho chapéu de palha.

A fantástica fábrica de geléia

Encontrei minha mãe no cinema.
Ela empunhava um chocolate.

Encontrei o cinema na minha mãe,
uma fantástica fábrica disso.

A minha mãe vocês esqueçam;
o chocolate tampouco considerem;
na fábrica se deixem molhar;
e o cinema...
ah, o cinema vocês carreguem,
mas sempre imerso na geléia.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Seco ou suave?

O olho
fechado,
a boca
aberta.

A dela
desfilando pelos cravos do meu rosto,
a minha
balbuciando penitências.

O escárnio dos seus dentes
se misturava ao vinho
que vazava dos meus poros.

Imersa nesse mar de deboche
estava a vontade
que já foi minha,
mãos-dadas com a consciência
numa luta para seguir.

Assim, me afogando no quarto,
resolvi beber um pouco de ti.
Mas sei que, não fosse o fermentado
e todo seu poder de transcender,
pediria para você ligar o rádio.


Lavoura Arcaica, Luiz Fernando Carvalho.

Anti-diálogo

-Jurema, vem cá! Me conta, guria. É verdade que a Antônia deu pro seu Paulo e que o Marcos descobriu e que bebeu todas e bateu no filho que engravidou uma mocinha da 6ª série que tem o pai preso e a mãe drogada que se prostitui naquela rua que o Pedro bateu de carro quando andava procurando a namorada que tinha ido ver novela na casa do ex-marido?
-Sim, Carmem, é tudo verdade. Mas e o teu filho? Como ele tá?
-Não sei, Jurema.

Tróia

Junto à barca navega minha perdição,
Em meu porto inseguro observo mar adentro
Quando nas ondas amorfas me encontro
Flutuando sem rumo, sem ação.

Nunca basta a advertência de minha razão
Pois minha sentença é sempre premeditada.
Ao perder-me minha liberdade é antecipada
No que meus anseios, ao cabo, fluem em vazão.

Leio em tua fronte uma ameaça
Desfigurando meu orgulho com desdém
Se insinuando: venho desatar tua mordaça.

Já então desperto como vítima
Assim me ajoelho
Diante da menina que se fez ama.

(Edu Jacques)

Luísa e o escuro

A noite me torna criança.

Meus indicadores
não demoram a se recolher
diante da imensa lona
com que forras
nossas horas de silêncio.

Preto é a cor da afasia.

Incapaz de apontar o que quero,
me deixo machucar
pelo peso do teu sexo
apenas para ter certeza
de que ainda estou viva.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Alguém me viu por aí?

esse corpo assim, solto,
nem sonha
que está com alguém.

o ronco,
numa valsa pelo quarto,
anuncia a indiferença.

e, no meio disso tudo,
uma louca vontade de gritar
ou sair perguntando
Alguém me viu por aí?