quinta-feira, 3 de março de 2011

esfinge

encara

cara
a
cara

tão grande era
a vontade de decifrar
que devorou a esfinge

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

además

remera rota
vasos vacíos
sombrero sucio

suyos resistieron
sencillos recuerdos

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Cela

gastava o giz
na parede áspera
com desenho de mulher
que nunca acabava

um giz curto
um homem doído
uma parede à cal
um mau cheiro

sonhava abraçá-la
deitá-la na cama
como fazia quando
só a ela estava preso

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

in-teiro

se me queres por inteiro,
terás um pouco mais

abandonarei o espelho
para evitar teu ciúme
e seguirei amando em mim
só o pedaço que há de ti.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

obsesión

hoy
mi sueño
fué
tu sonrisa
es
mi sueño
hoy

sábado, 20 de junho de 2009

sublimação

cansei das mordidas
e dos beijos alucinados

das mãos lânguidas
pressionando o sexo

do suor que lava
o rosto estranho

prefiro por ora
a quietude da cabeça
sobre o braço estendido

sexta-feira, 19 de junho de 2009

arte

o martelo castiga o prego
que perfura a madeira

a madeira da cama em êxtase
fustiga a dura parede

o suspiro do operário
é o gemido do amante

segunda-feira, 8 de junho de 2009

vingança

nervosos, os lábios
cobrem de vermelho
um inimigo qualquer

como a espada
que de sangue tinge
o pálido quadril

mulher na guerra
ama por vingança

sábado, 30 de maio de 2009

critérios

é bom e belo

se
encurta a distância
entre o dia e a noite
se
é insurreição
de sonhos recalcados
e
alforria
dum inconsciente rebelde.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

dos pingos

a água escorrendo do céu
é o mar que se torna chuva,
a palavra que se torna beijo
é o pensamento querendo molhar.

quarta-feira, 29 de abril de 2009

vagabundo

letras, letras e letras...

ainda hei de ser mágico,
do tipo Carlitos,
e tirar do chapéu-coco

sorrisos, abraços e beijos

homem-mundo

feito
balão de hélio
vago
pela atmosfera
desfruto
sabores,
cheiros,
mistérios

de ares distintos
subindo...


terça-feira, 14 de abril de 2009

A senilidade do belo

revisto tua bolsa

não achando nada
senão batom

medito:

onde se esconde a beleza
que entronava teu rosto

ontem?

domingo, 29 de março de 2009

existir agora

é morrer de sede
em frente ao mar

e assistir com inveja
o espetáculo daqueles

que se debatem
na ânsia de beber tudo

domingo, 15 de março de 2009

são cigarras

teu cabelo dança
feito cigarra no ar
e reza a lenda
que tua chegada
é anúncio de tempestade.

terça-feira, 10 de março de 2009

Amor é pássaro; pássaro é vôo

Os olhos do amor
são os olhos
de um pássaro
que escolhe,
vez
por
vez,
a melhor árvore
para pousar.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Metonímia

plantei cruzes
pela estrada
para os olhos
dos amores
que se foram

e só não levei flores
porque novos olhos
já as reclamavam

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Nîmes

me enxergo na ponte
que faz o queijo
entre a boca
e a torrada

estico tudo
padrão-ímpar
ora sendo um pé,
ora sendo a estrada

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Crianças contra Cronos

estar contigo é burlar dimensões,
é desafiar o império do tempo.
Cá estamos a provar
a/da fraqueza de Cronos.

Deitado no teu colo,
os versos chegando
chorosos ao pé da cama,
sou todo menino.

Saturno devorando a un hijo, Goya.

domingo, 4 de janeiro de 2009

Nós, outros espanhóis

meu olho é uma lente
que te grava sempre
em primeiro plano

quando oculto o campo
é que te vejo melhor
quando escolho o piegas
é que somos diferentes

com tempero de almodóvar
eu que te filmo
mas é tu que me enquadra
em cores quentes.


Má educação, Almodóvar, 2004.

A Lista de Super

porque, nesse/desse modo,comprar e amar
são extensões dos mesmos princípios
;
porque o amor tá na prateleira,
e a coisa é a medida de todos os homens.
  • Abacaxi Bem Maduro
  • Coxão Muito Mole
  • Sabão de Glicerina
  • Um Amor Novo
compras,
conversas,
confusão.

Entrevista

entrevistador: -Quais são seus sonhos?
entrevistado: -Ter um bom carro e uma mulher gostosa.
entrevistador: -Uma minoria contra-ordem diria que isso (carro e mulher) é UM sonho. Você concorda?
entrevistado: -Não, gosto mais de carros. São mais confiáveis e não choram.
entrevistador: -O que é realmente importante para o senhor?
entrevistado: -Dinheiro! Tendo ele você alcança seus sonhos.
entrevistador: -Você pensou nas últimas 24 horas?
entrevistado: -Pensar? Não.
entrevistador: -Você está admitido. Nossa sociedade te espera de braços abertos.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

L'avventura

Na invenção de certos tubarões
ou na arquitetura de breves paixões,
o gás d'aventura é sempre fugir
do cruzeiro de angústias incomunicáveis.







L'Avventura, Michelangelo Antonioni, 1960.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Só a dor é real

Qual é a distância
entre a luz amarela
no alto desse poste
e a estrela hasteada
no céu de madrugada?

Eu faço contas, calculo;
espanto bichos com chinelos.
Tudo isso sem saber
se a estrela e tu
ainda existem.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

És mola

uma velhinha rastejava,
qual serpente moribunda,
pela calçada irregular.

alcançando sua cabeça,
arranquei as poucas escamas
que ainda lhe acompanhavam.

ou emprestei a caridade
de um breve sorriso.

não lembro bem agora.

sábado, 20 de dezembro de 2008

Ode à imaginação

No barco da minha história,
és a quilha com que corto
as ondas de tristeza.

Na pororoca do desejo,
és onde me agarro
com todas as forças.

Nunca me deixe,
doce, amarga, salgada
e ácida imaginação.

Me vê um bem recheado

É normal
sair do quarto
sem abrir a porta?
Viajar pelo universo
recostado em coxas?
Subir à plenitude
com as cordas
de um pescoço?
Cantar o refúgio
com o calar de tudo?

E flutuar entre árvores
da varanda de uma casa?
É normal?

Não que eu me preocupe
com o normal,
é que me delicio
com os sonhos.

Sonho!
Te chamaria assim
se você já não
tivesse um nome.

O muro-alvo/alvo

O alvo do muro militarizado
pode muito bem virar
o outdoor do nosso espaço.

Basta que pulemos esse
com o peso de mãos-asas.

Amigos, a pronúncia do novo
vem das manchas do antigo,
vem pra manchar ainda mais
a escravidão do uniforme
com as vivas cores da luta.

Use chapéu nesse verão

Cadê você?

passei alguns dias
contigo na cabeça.
Na primeira queda
já fosse abandono.

vemcáchegavolta,
evito a lembrança
de procurar o mesmo
velho chapéu de palha.

A fantástica fábrica de geléia

Encontrei minha mãe no cinema.
Ela empunhava um chocolate.

Encontrei o cinema na minha mãe,
uma fantástica fábrica disso.

A minha mãe vocês esqueçam;
o chocolate tampouco considerem;
na fábrica se deixem molhar;
e o cinema...
ah, o cinema vocês carreguem,
mas sempre imerso na geléia.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Seco ou suave?

O olho
fechado,
a boca
aberta.

A dela
desfilando pelos cravos do meu rosto,
a minha
balbuciando penitências.

O escárnio dos seus dentes
se misturava ao vinho
que vazava dos meus poros.

Imersa nesse mar de deboche
estava a vontade
que já foi minha,
mãos-dadas com a consciência
numa luta para seguir.

Assim, me afogando no quarto,
resolvi beber um pouco de ti.
Mas sei que, não fosse o fermentado
e todo seu poder de transcender,
pediria para você ligar o rádio.


Lavoura Arcaica, Luiz Fernando Carvalho.

Anti-diálogo

-Jurema, vem cá! Me conta, guria. É verdade que a Antônia deu pro seu Paulo e que o Marcos descobriu e que bebeu todas e bateu no filho que engravidou uma mocinha da 6ª série que tem o pai preso e a mãe drogada que se prostitui naquela rua que o Pedro bateu de carro quando andava procurando a namorada que tinha ido ver novela na casa do ex-marido?
-Sim, Carmem, é tudo verdade. Mas e o teu filho? Como ele tá?
-Não sei, Jurema.

Tróia

Junto à barca navega minha perdição,
Em meu porto inseguro observo mar adentro
Quando nas ondas amorfas me encontro
Flutuando sem rumo, sem ação.

Nunca basta a advertência de minha razão
Pois minha sentença é sempre premeditada.
Ao perder-me minha liberdade é antecipada
No que meus anseios, ao cabo, fluem em vazão.

Leio em tua fronte uma ameaça
Desfigurando meu orgulho com desdém
Se insinuando: venho desatar tua mordaça.

Já então desperto como vítima
Assim me ajoelho
Diante da menina que se fez ama.

(Edu Jacques)

Luísa e o escuro

A noite me torna criança.

Meus indicadores
não demoram a se recolher
diante da imensa lona
com que forras
nossas horas de silêncio.

Preto é a cor da afasia.

Incapaz de apontar o que quero,
me deixo machucar
pelo peso do teu sexo
apenas para ter certeza
de que ainda estou viva.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Alguém me viu por aí?

esse corpo assim, solto,
nem sonha
que está com alguém.

o ronco,
numa valsa pelo quarto,
anuncia a indiferença.

e, no meio disso tudo,
uma louca vontade de gritar
ou sair perguntando
Alguém me viu por aí?

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

A estrangeira

Todo o dia quando acorda
pergunta de que chão brotou.

Acha não ser daqui.
Sua mãe tem por estranho
a indiferença de suas costas
à novela que curva tantas.

A menina é estrangeira
porque não se rende
à ditadura do banal
e constrói seu mundo
com lágrimas secas.

A dor trova

Durmo com a certeza
de não ter escrito
a minha melhor poesia
porque deito com a tristeza
de não ter tocado
a tua boca.

Eu penso bem além
do que consigo expressar
e seria tão bom
se nem precisasse.

Vou fazer de nossos olhares
dois grandes trovadores
a cantar as intenções
e poupar o coração
da empresa de detetive.

A cor das mariposas

Na fumaça dos motores irrequietos
cortinas de tijolos escondem o azul.
No buzinar de andares apressados
o ruído mecânico cala o rouxinol.

No tilintar dos ponteiros arrogantes
a soberba dos olhares retos.
Altas janelas, pobres calçadas
recebem o tropeçar de quem só passa.

O negro ganha a borracha das solas distantes
para quem do verde só quer o domingo.
Na poluição dos letreiros confusos
olhos cansados perseguem o banal.

Pareces ser, meu amor,
no cinza das cidades,
a última flor a colorir meu cenário.

sábado, 22 de novembro de 2008

Corpo(s)

Como posso chamar de meu
um corpo que só encontra sentido
na presença de outro?

Já não vejo por que ter boca
senão pra te morder;
pra quê ter dentes
se não te beijo.
E já nem chamo de olho
o que não fecha com o teu
para enxergar a eternidade.

Preciso de ti
qual a palavra corpo
não existe no singular.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Mercadores do vazio

A Amazônia virou sabonete
e Guevara virou camiseta.
A flor foi para o frasco
e o amor para a vitrine.

Também não escapei.
Com terno caro
fui embalado e vendido
por baixo preço.

Tornamos o mundo mercadoria
e acabamos por perdê-lo.
Deixamos nossas mulheres
e nos apaixonamos
pelos fundos de pensão.

Cuidamos tanto
da bolsa de valores
que esquecemos
onde guardamos os nossos.

Por quê?

Ainda não conheço o homem que,
mesmo inconscientemente,
não tenha se perguntado
da origem do seu amor.

Talvez já na curiosidade
de seus poucos anos
indague ao jovem espírito:

Ela é mesmo tão bonita
ou é meu olhar sedento
abraçando a vontade?

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Brete móvel

Com quantas frustrações
se faz um homem?
Melhor ainda,
com quantos "nãos"
se desfaz um homem?

Hoje peguei um ônibus lotado,
mas não vi pessoas.
Eu não minto,
é certo que eram cordeiros!

domingo, 16 de novembro de 2008

O fantasma do espelho

Se me olho no espelho,
é como se um outro eu
me espancasse
com força e vontade
de milhares de mãos.

Sou forte, diz ele.
Enquanto trabalhas, namoras,
te demitem, te separam,
eu cresço mais,
alimentado pelo que não fostes.

Fala baixo, eu suplico.
Os vizinhos todos vão saber
que não moro sozinho.
Logo eu
que não acredito em fantasmas.

Não importa, ele replica.
Sou livre!
Te deixo o sofrer da existência
e me nutro da idéia.
Me combater é inútil
porque sou tu e muitos outros.


Espelho Falso, René Magritte.

sábado, 15 de novembro de 2008

Todo nome próprio é composto

Serão pássaros
ou sacolas de plástico?

Saberemos quando
o vento diminuir.

Porta-aviões

Não é surpresa alguma
que sejamos trucidados
pelo mar revolto.

Estamos atracando
nossos barcos
com fio dental.

O silêncio é o resto

O orgasmo tamborilava
como castigo
no meu espírito.

Ela ali, calada,
se deliciando
na resignação
de quem morre
pra ser livre.

A gente demora
a se ver como assassino.
Tem homem que morre sem saber
que toda mulher é Joana d'Arc.

Não sei lidar com a morte.
Mas vem cá, mulher,
por que não gritas?
Esse silêncio...
ai, o silêncio é o resto.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Meu pé de laranja rima

Cintilante,
oscilo entre
o alfinete e o mural.

Lancinante,
meu grito é da alegria
de quem passa mal.

Os óculos que carrego
são pra esconder
que também sou cego.

Alice

Muito esquisitíssimo!

Há muitas Londres
venho caindo, caindo
sem entender
que seres são esses
com cabeças de relógio.

Talvez crocodilos dourados,
talvez morsas, morcegos,
quem sabe camundongos.
Talvez eu mesmo.

Dizia "beba-me"
naquele tinto que tomei?
Não não,
sempre fui telescópio.

Sempre?
Palavrinha que soa mal!
Será que existe
nesse idioma?

Só uso sempre
quando digo
que estou com alguém.
Adoro conversar comigo.

Tenho uma imaginação rancorosa
e uma curiosidade pouco cristã.
Nunca me perdoam
e sempre que me espicho
acabo por encontrá-las.

Perguntei a elas:
Quem sou eu?
Me responderam:
Talvez Diego,
talvez Alice.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

A dialética do ser

Com uma mão
escrevo uma carta,
com outra
te lanço um tapa.

Te escrevo
como se fosse para outra,
te bato
como o fazia meu pai.

Os rios todos se cruzam
nessa terra de Baco,
inebriando um tempo
sem fim ou começo.

Sei que me querem
novela das oito,
mas enceno Hamlet
na eterna busca do que ser.

E se estou sendo um,
também sou outro
enquanto possibilidade.

Vocês não me enganam,
sei que sou rio de vinho,
dialético processo,
e que me movo assim:
na luta dos contrários.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Vivre sa vie

Desfolhando meus poemas,
uma amiga me disse
que faltava um de amor.

Eu falei que precisava
ter os sentidos submersos
na poesia louca de Godard;
ser metralhado
pela melancolia parisiense;
travar conversa
com o silêncio falante.

Precisava filosofar
nos cafés da dúvida;
sorver o enigma
da felicidade triste;
e me libertar
com as mãos que correm
pelos bulevares do meu corpo.

Tá, não disse isso tudo.
Argumentei apenas
que precisava te ver,
minha Anna Karina.
Ser morto por ti/contigo
e começar
a viver a vida.


Anna Karina em Vivre sa vie, 1962, Godard.

domingo, 9 de novembro de 2008

Sentido!

Disciplina é o caralho.

Eu que não me rendo
à regra da máxima produtividade.
Eu que não me rendo
à jornada de subordinação.
Eu que não me rendo
ao obedecer do não-pensar.
Eu que não me rendo
ao comum.

Disciplina é o caralho!

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Blecaute

"Apagão deixa país parado"
é a manchete de um jornal
que não pode circular.

"Na falta de energia,
ficamos sem computador,
televisão, geladeira, chuveiro"
continua a matéria.

"Ninguém trabalha, ninguém vive"
vociferam os pais
enquanto os filhos
roubam as suas pantufas
para armar goleiras
numa larga rua do centro.

Sou um menino desses,
feliz no quarto escuro
e grato pelo blecaute
que me poupou de
abandonar teu seio
para apagar a lâmpada.

Fim de tarde

Te vejo assim tão só,
a graciosidade do teu rosto
a desfilar impaciente
pela sala de ar pesado.

Percebo um cabelo cansado,
procurando ganhar o chão
e rastejar até a porta
para chegar às margaridas.

E te vejo assim tão bela
que só resta a certeza
de que a maciez do teu colo
não tem o dono que merece.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Filosofia da cegueira

De que interessam as rimas
e como se pensa o viver
para o pobre homem
que só existe para comer?

Por vezes parece
que a poesia não passa
de pura besteira.
A vida aparece
como infinitos capítulos
de pobreza e cegueira.

Solitudine

Solidão não é algo a se pensar
no banco do fundo de um ônibus.

Ela é o nada presente em tudo,
a eterna companheira
de quem constrói o abandono.

É o estado natural e o final,
o previsível e nem por isso evitável,
a expansão de uma noite no hospital,
a condensação de todo detestável.

O melancólico de um filho que escapa,
o olhar refugiado em um beijo,
a marca de um violento tapa,
o exílio constante do desejo.

Solidão não é algo a se pensar
no banco do fundo de um ônibus.

Do casal apaixonado à direita,
qual partirá primeiro?
qual tomará o amargo café que é estar só?

Do ingênuo casal à esquerda,
qual trairá primeiro?
qual morrerá na ilusão de ter errado?

Solidão não é algo a se pensar
no banco do fundo de um ônibus
porque você pode não querer descer.

Dom Quixano

Somos todos cavaleiros andantes
construindo dulcinéias
e tentando tornar cada encontro
uma aventura inesquecível.

Somos todos solitários errantes
inventando epopéias
e montando destemidos burricos
rumo a castelos de palha.

Declaramos guerra ao real
e temos sede de admiração.
Criamos inimigos tão grandes
quanto a nossa vontade de fugir.

Enfrentamos demoníacos dragões
com viseiras de papelão.
Bebericamos do delírio
para escapar do presente vulgar.

Derrotamos valorosos gigantes,
salvamos nobres donzelas.
A lua anuncia o fim da jornada
e na volta para casa
só algo ainda nos acompanha:
nossa capacidade de sonhar.

Turbilhão

Por que vens, turbilhão,
e levas todos meus papéis?
O sol não te quer bem,
vai à noite, arrasta a seda
e me revela o claro rubi.

A força do teu vento, turbilhão,
deveria sábia também ser.
Se assim fosse,
carregaria seu ímpeto daqui
e marcaria com fúria outro corpo.

És criação de outro ser, turbilhão,
e ele não está aqui.
És obra da menina do rubi,
és castigo pelo que eu não fiz.

Me entenda, turbilhão,
não quero tua companhia.
Na partida de tua dona,
decidi ficar sozinho.

sábado, 1 de novembro de 2008

Em tempos de abóbora

Halloween?

Para mim é um bom exemplo
do convívio harmônico
entre os diferentes.

Bruxas, abóboras e crianças
estão muito felizes hoje.
E, sobretudo, nós
nos afirmamos no posto
de alegres macaquinhos
imitando os seus donos.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Aquarela

Tem gente que usa
o amarelo do desânimo,
o ocre da argila,
o branco da neve,
o vermelho da vergonha.

Agora eu,
para pintar a minha vida,
uso a aquarela dos meus amores.

Bulimia

Quero ter,
não importa o quê,
desde que seja novo.

E quero ter muito,
muito mais do que
o outro.

Mas o que tenho na verdade
já é coisa bem antiga.
É uma anedonia neurótica,
obra dessa cultura da bulimia:
como e como muito,
já pensando em vomitar.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Neva nos trópicos

O vento glacial congela a menina.
Será que não a verão?
O frio dos corações já toma muito tempo.
Será que não há verão?

O gélido olhar consome as relações
e tudo é um artifício do artificial;
não há abraço sincero
e tudo se quebrou com a corrente polar.

A indiferença domina os lábios.
Será que não a verão?
Congelaram nossas emoções.
Será que não há verão?

1 é dois, três

A palavra nasce
de sangrentas batalhas
entre vários sentimentos.

A mente é palco
para estranhos confrontos
de violentas idéias
e a enxaqueca é ressaca
dessas lutas que travamos.

Mas nenhuma idéia perde
nessa guerra interior.
O pensamento que aparece
carrega as marcas do que fica.

Por isso sou plural
e sei que a carícia mais doce
tem a vontade de destruir.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

O anel que circunda a gaiola

Em que canto do armário masculino
jazem teus sonhos mais belos?
Fugiram assustados da tua alma
e acabaram com as traças.

Com a promessa da aliança,
te separasse da vida
e no momento do pedido
aceitasse a renúncia.

Provasse a luxúria do vestido,
exibisse a todos o caro véu.
Mas antes de subir o degrau
a canção já se fez triste.

O gris das cortinas te conformou
e o mundo acordou sem teu nácar.
Atiraram contra teus planos
e dormisse com o assassino.

Uma gaiola.

Brinquedo

o que fica de todas nossas conversas?
o que fica de nossos abraços?
e de nossos beijos?
nossos olhares?
cafunés?

o que fica de nós?

tenho pensado tanto
que não somos mais nada,
que nos tornamos brinquedos,
importantes no pouco tempo
que dura a novidade.

Ícaro

Se desejar é delirar,
enlouqueci contigo.

Minhas certezas se encolheram
diante do teu universo,
minhas convicções se tornaram
balbúcias infantis.

E foi como menino,
filho da tua leveza,
que voei por teus lábios.

E foi como menino,
inventor de fantasias,
que procurei a eternidade.

Curiosa inocência!
Mal sabia que a imensidão
é o esconderijo do desejo
e o terreno das chamas.

Curiosa inocência!
Acreditei ser a única mão,
ser nossa a brincadeira
de traçar desenhos nas nuvens.

Pensei ser a paixão
o ingresso para o sempre
e alcei vôos muito altos
para as frágeis asas de cera.

Transitei entre o tudo e o nada
e fui queimado pelos anseios.
Por querer demais, acabei jogado
no louco rio do real.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

La ley del deseo

Um olhar desconfiado
e um sorriso todo sádico.
É assim que o desejo
encontra um rosto
no apartamento pequeno.

Desejo que faz sua lei,
escravizando mente e corpo.

Os lábios que hesitavam
unem suas extremidades,
levando os dentes
a comprimir a carne.

Os sussurros tímidos
estouram como fogos
e chegam à rua
como urros de êxtase.

O porão da memória
também lamenta sua ação,
tendo nas úmidas paredes
o eterno retrato do sexo.

O desejo se espalha
e o apartamento se molda.

O quarto deixa de ser pequeno
porque as mordidas ficam,
as lembranças ficam,
e os gritos que dá o tesão
não só acordam o prédio
como despertam a cidade inteira.

Um homem fala no pomar

O capital é mesmo fantástico!
Antes só comíamos as mercadorias,
agora podemos ouvi-las
e até rebolar com elas.

O progresso diminuiu tudo.
O sentido da nossa vida
cabe agora em uma música
com monossílabos ritmados.

Gostosa! Delíííícia!
Tá no ponto, hein.

As mulheres são valorizadas
qual melancias em uma feira.

Contraditória é a sociedade
onde as prostitutas são presas
pelos mesmos policiais
que presenteiam os filhos
com o dvd de uma mulher-fruta.


Uma mulher.

domingo, 26 de outubro de 2008

Céu de Narciso

Os olhos inchados da menina
se fascinam com as nuvens
pela devoção a Narciso.

E preferem aquelas do oeste,
as que aparecem no laranja vermelho
como luto pelo fim do dia,
aquelas que melhor representam
a tragédia que ela vive.

São as nuvens pesadas que atraem,
porque o céu molhado é espelho.

A menina se encanta com o céu
porque reconhece nele
as lágrimas que derramou,
enxerga nos pingos de chuva
um pouco do seu amor.

A ideologia do corpo

Por vezes acredito
que o sentido é esse mesmo:
os afeitos às palavras
não têm o prazer do toque.

Me incomoda
essa propriedade da beleza
de ser propriedade
dos brutos.

E por vezes penso
que enquanto
o sensível for fraqueza
nunca seremos fortes
e viveremos séculos perdidos
na ideologia do corpo.

Fim é começo

São bem mais que cansaço
os olhos pequenos
do fim de festa.

São o desenho da frustração,
o sinal de que essa
se juntou ao grupo
das noites de sábado.

A contração das pupilas
é a força da memória
apagando espectros,
deletando resíduos
dos beijos voláteis.

A decepção por não ter encontrado
e a culpa ter procurado
em tantos corpos
o sabor dos lábios dele.

Esses olhos pequenos
são o recado das pálpebras:
pega o caminho de casa,
deita, dorme e sonha,
sonha com teu amado.

É hora

Sabe,
chega uma hora
que você quer viver,

quebrar as vitrines desse shopping
que dizem ser o mundo
e me mostram o cruel
com a carapaça de sensacional,

rasgar esse roteiro mecenas
do perverso espetáculo do lucro,
desligar o manicômio televisivo
que me aprisiona no mais do mesmo,

queimar essa escola-prisão
para poder me educar,
jogar fora esse terço
para ser homem por inteiro,

viver acelerando a história
para depois parar e sentar,
lutar pelo direito roubado
de namorar despreocupado
em um banco da Tamandaré.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

A memória da persistência

Já são dez horas
mas dez horas pra quem?
São só dez horas
já foi, não é, não vai ser também

O sentido horário do relógio
não faz sentido algum
Se os ponteiros girassem pr'outro lado
tudo ficaria igual

O que marca o nosso tempo
não é o toque do metal
O que marca o nosso tempo
é a e x p r e s s ã o d e n o s s a s f a c e s
e as faces de nossas expressões



Persistência da memória, Dalí.

A essência fala no/do Rio Grande

Me inquieta essa leveza da cidade
agindo como uma cortesã
que recorre à maquiagem.

São flores e arbustos
tornados propriedades
de uma estética vazia,
uma beleza miserável.

Só não privatizaram a mim
porque me escondo
no invisível do paisagismo
e daí corro para a mente
de quem se deixa pensar.

Sou a essência,
e desfruto a liberdade
de habitar tua consciência
como capacidade de mudança.

Feli Fuga Cidade

Felicidade o que é?
É o bem da alma.

E não me sinto bem
porque te tenho,
não estou bem
porque estás comigo.

Feliz pude ficar
porque consegui te ter.

Felicidade é o conveniente namoro
do orgulho com a vaidade,
deflagrado com a aquisição,
com o sucesso fugaz da busca.

É voltar de uma caçada
com a imponência de ser predador.

Frida

As mulheres?
Elas nunca deixam
de ser meninas,
só trocam seus amigos.

Na infância,
andam abraçadas
às suas bonecas
e correm despreocupadas,
exalando alegria e pureza.

Depois,
crescem os seios,
expulsando o doce do peito,
tomando o lugar da inocência,
dos sorrisos e brincadeiras.

A insegurança vem feroz
e as bonecas já estão longe.
O desespero faz seu trabalho:
as meninas liberam seus corpos
para desfilarem presunçosos
à procura de alguém
que afugente a solidão
e recrie o sabor da infância.

Ali terá ação

Cidadão coça cabeça:
-Como comerei?

Cabeça canalha calcula:
-Comerás comida.

Cidadão comenta:
-Comida custa caro...

Cidadão cultiva caju,
capitalista come caju.

Cabeça cansada cantarola:
-Caro cidadão! Caro, cidadão?

Cidadão capta código:
-Claro! Comida crio,
comida comerei.

Mundo cela

Feliz em seu cárcere,
decora as paredes de sua cela
e agradece aos céus
pela presença das gotas de sol
que cozinham sua cabeça.

Sem ver as algemas,
acredita ser dono da liberdade
e, numa triste alegria,
transforma toda sua vida
em um eterno carnaval.

E aquele que se diz diferente
esconde sua identidade,
disfarçando assim sua origem,
e esbraveja quando
é chamado de humano.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Antropofagia

A refeição não acaba
com o sair da mesa.
Há na rua um sorriso
e quero um pedaço.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Miséria pós-moderna

Andam dizendo por aí
que a verdade já não existe,
as classes foram superadas,
e a relatividade é hoje
a nossa única certeza.

Tenho defendido tudo isso
e ensinado pelas ruas.

O povo me recebe bem
e parece já ter aprendido algo.
Ainda ontem na praça
um homem disse não ser pobre
antes de me pedir um pão.

Davi vende doces

Luís e seus amigos
saíram da Igreja e
espancaram o menino
que vende doces.

"Bixa!"
foi o pontapé
mais brando.

Na outra noite,
as mãos jovens
ainda seguravam
a mesma bandeija.

Dessa vez o menino
não tinha por que temer.
Luís estava com a namorada
e a moça adora brigadeiro.

A força e o dinheiro
compram doces, companhia,
segurança e aplausos,
mas nunca comprarão
o sorriso com o qual
o menino se vingou
do patético playboy.

Guido

Nunca piscou, gemeu, transou, correu, gritou, sorriu, agiu,
mordeu, brigou, chorou, brincou, pensou, cantou, pediu,
defendeu, discutiu, acusou, abraçou, imaginou, sonhou.

Não amou de verdade;
não teve uma vez sequer
em seu rosto maquiado
cabelos que não os seus.

Mas foi à escola.
O Professor passou um filme;
ela pesquisou cinema, benigni, fascismo, mussolini, nazismo,
campos de concentração, hitler, alemães, judeus e italianos,
mas não pôde entender por que
a vida é bela.


A vida é bela, Roberto Benigni, 1997.

domingo, 19 de outubro de 2008

25 de março

Cai uma cabeça,
a dela/minha/nossa.
Minha nossa!

Os óculos rastrearam
o amante com outra.
A sacada ficou pequena
para tanto ciúme.

A raiva transbordou,
ganhando vida e cor
no vermelho que manchou
óculos, asfalto
e as horríveis camisas
dos felizes contrabandistas.

Vidaquarela

Que doença nomeia
essa estranha normalidade?
Que doença nomeia
o cinza da sanidade?

O ordinário repousa passivo
na poltrona da harmonia
enxergando como céu
a janela do seu quarto.

Sábio o que quebra o comum
e encontra no diferente
o colorido da vida.

Não mais

Não respondo mais
à provocação do teu corpo.
Já não molho meu rosto
no teu mar de desejo.

Tuas coxas carnudas
já não ganham meu querer,
tuas panturrilhas torneadas
não me compram mais.

Te afasta, mulher,
teus peitos me enojam!
A dança dos teus quadris
é uma náusea que evito.

Se procurares hoje
o recreio do meu corpo,
ensurdecerás com o grito
de me deixa sonhar!

sábado, 18 de outubro de 2008

Sartrélite

Quão bela é a lua
­­­que esquece de ir embora
e, com o raiar do dia,
ainda permanece no céu.

Tem a beleza do engano,
da lâmpada que no claro
continua a brilhar
sem a preocupação de ser vista.

Só é bonita
porque não se quer assim.
Desperta o olhar
por não pretender fazê-lo.

Quanto lirismo há nesse globo
perfeito por seus descuidos!

Bela é a lua
da qual te falo
e não fazes idéia
do quanto te pareces com ela.

Los Olvidados

Os pais esquecem seus filhos,
que matam seus amigos,
violentam mulheres,
agridem paralíticos
e espancam velhos cegos
sem saber que
velhos ficarão
e cegos já estão.

Mescalina escarlate

Parece mescalina,
mas é só paixão.

Fez o homem dedicar
doces canções mortais
a uma bela cortesã
e removeu com o suor
do corpo em chamas
o batom barato
para escrever "maravilhoso"
nos lábios dos amantes.

Paixão que o tornou ladrão
roubando pedaços do tempo
para tecer o seu sempre.
Que colocou no sorriso do outro
uma parte do escritor
e fechou seus olhos,
para que enxergasse o infinito
e tropeçasse no agora.

Mas a droga escarlate
não ensinou que os mortos
também fecham seus olhos
e o pobre escritor
foi procurar no copo d'álcool
o veneno de Romeu
e só encontrou o reflexo
de um tuberculoso morrendo.

Nova Petrópolis

O casal que dobra a esquina
vê seus grossos casacos
serem encharcados pelas lágrimas
que brotam de seus olhos.

Todos dizem conhecer o motivo
e culpam a noite de inverno.
Acreditam ser o vento frio
a razão pela qual choram.

Eles não sabem,
mas as lágrimas só caem
porque na virada da esquina
um novo horizonte se desdobra,
a alma teme a perda e já sofre
de saudade antecipada.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Elogio da inveja

Vejo um casal preso à árvore
pelos beijos molhados
de lábios a jurar e selar
promessas de uma vida inteira.

Queria eu me deleitar
nesse doce suco da vaidade;
me lambuzar
no gozo da ilusão.

Digo que a inveja
é a mãe da paixão,
porque é dela esse pé
que me empurra a procurar
uma árvore, um beijo, uma promessa.

Julho

Será o inverno
que resseca os lábios
ou a falta de outros
para molhá-los?

Será o inverno
que traz os cobertores
ou a falta de corpos
que aqueçam?

O inverno podia ser quente
não fosse a frieza humana.