segunda-feira, 24 de novembro de 2008

A estrangeira

Todo o dia quando acorda
pergunta de que chão brotou.

Acha não ser daqui.
Sua mãe tem por estranho
a indiferença de suas costas
à novela que curva tantas.

A menina é estrangeira
porque não se rende
à ditadura do banal
e constrói seu mundo
com lágrimas secas.

A dor trova

Durmo com a certeza
de não ter escrito
a minha melhor poesia
porque deito com a tristeza
de não ter tocado
a tua boca.

Eu penso bem além
do que consigo expressar
e seria tão bom
se nem precisasse.

Vou fazer de nossos olhares
dois grandes trovadores
a cantar as intenções
e poupar o coração
da empresa de detetive.

A cor das mariposas

Na fumaça dos motores irrequietos
cortinas de tijolos escondem o azul.
No buzinar de andares apressados
o ruído mecânico cala o rouxinol.

No tilintar dos ponteiros arrogantes
a soberba dos olhares retos.
Altas janelas, pobres calçadas
recebem o tropeçar de quem só passa.

O negro ganha a borracha das solas distantes
para quem do verde só quer o domingo.
Na poluição dos letreiros confusos
olhos cansados perseguem o banal.

Pareces ser, meu amor,
no cinza das cidades,
a última flor a colorir meu cenário.

sábado, 22 de novembro de 2008

Corpo(s)

Como posso chamar de meu
um corpo que só encontra sentido
na presença de outro?

Já não vejo por que ter boca
senão pra te morder;
pra quê ter dentes
se não te beijo.
E já nem chamo de olho
o que não fecha com o teu
para enxergar a eternidade.

Preciso de ti
qual a palavra corpo
não existe no singular.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Mercadores do vazio

A Amazônia virou sabonete
e Guevara virou camiseta.
A flor foi para o frasco
e o amor para a vitrine.

Também não escapei.
Com terno caro
fui embalado e vendido
por baixo preço.

Tornamos o mundo mercadoria
e acabamos por perdê-lo.
Deixamos nossas mulheres
e nos apaixonamos
pelos fundos de pensão.

Cuidamos tanto
da bolsa de valores
que esquecemos
onde guardamos os nossos.

Por quê?

Ainda não conheço o homem que,
mesmo inconscientemente,
não tenha se perguntado
da origem do seu amor.

Talvez já na curiosidade
de seus poucos anos
indague ao jovem espírito:

Ela é mesmo tão bonita
ou é meu olhar sedento
abraçando a vontade?

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Brete móvel

Com quantas frustrações
se faz um homem?
Melhor ainda,
com quantos "nãos"
se desfaz um homem?

Hoje peguei um ônibus lotado,
mas não vi pessoas.
Eu não minto,
é certo que eram cordeiros!

domingo, 16 de novembro de 2008

O fantasma do espelho

Se me olho no espelho,
é como se um outro eu
me espancasse
com força e vontade
de milhares de mãos.

Sou forte, diz ele.
Enquanto trabalhas, namoras,
te demitem, te separam,
eu cresço mais,
alimentado pelo que não fostes.

Fala baixo, eu suplico.
Os vizinhos todos vão saber
que não moro sozinho.
Logo eu
que não acredito em fantasmas.

Não importa, ele replica.
Sou livre!
Te deixo o sofrer da existência
e me nutro da idéia.
Me combater é inútil
porque sou tu e muitos outros.


Espelho Falso, René Magritte.

sábado, 15 de novembro de 2008

Todo nome próprio é composto

Serão pássaros
ou sacolas de plástico?

Saberemos quando
o vento diminuir.

Porta-aviões

Não é surpresa alguma
que sejamos trucidados
pelo mar revolto.

Estamos atracando
nossos barcos
com fio dental.

O silêncio é o resto

O orgasmo tamborilava
como castigo
no meu espírito.

Ela ali, calada,
se deliciando
na resignação
de quem morre
pra ser livre.

A gente demora
a se ver como assassino.
Tem homem que morre sem saber
que toda mulher é Joana d'Arc.

Não sei lidar com a morte.
Mas vem cá, mulher,
por que não gritas?
Esse silêncio...
ai, o silêncio é o resto.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Meu pé de laranja rima

Cintilante,
oscilo entre
o alfinete e o mural.

Lancinante,
meu grito é da alegria
de quem passa mal.

Os óculos que carrego
são pra esconder
que também sou cego.

Alice

Muito esquisitíssimo!

Há muitas Londres
venho caindo, caindo
sem entender
que seres são esses
com cabeças de relógio.

Talvez crocodilos dourados,
talvez morsas, morcegos,
quem sabe camundongos.
Talvez eu mesmo.

Dizia "beba-me"
naquele tinto que tomei?
Não não,
sempre fui telescópio.

Sempre?
Palavrinha que soa mal!
Será que existe
nesse idioma?

Só uso sempre
quando digo
que estou com alguém.
Adoro conversar comigo.

Tenho uma imaginação rancorosa
e uma curiosidade pouco cristã.
Nunca me perdoam
e sempre que me espicho
acabo por encontrá-las.

Perguntei a elas:
Quem sou eu?
Me responderam:
Talvez Diego,
talvez Alice.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

A dialética do ser

Com uma mão
escrevo uma carta,
com outra
te lanço um tapa.

Te escrevo
como se fosse para outra,
te bato
como o fazia meu pai.

Os rios todos se cruzam
nessa terra de Baco,
inebriando um tempo
sem fim ou começo.

Sei que me querem
novela das oito,
mas enceno Hamlet
na eterna busca do que ser.

E se estou sendo um,
também sou outro
enquanto possibilidade.

Vocês não me enganam,
sei que sou rio de vinho,
dialético processo,
e que me movo assim:
na luta dos contrários.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Vivre sa vie

Desfolhando meus poemas,
uma amiga me disse
que faltava um de amor.

Eu falei que precisava
ter os sentidos submersos
na poesia louca de Godard;
ser metralhado
pela melancolia parisiense;
travar conversa
com o silêncio falante.

Precisava filosofar
nos cafés da dúvida;
sorver o enigma
da felicidade triste;
e me libertar
com as mãos que correm
pelos bulevares do meu corpo.

Tá, não disse isso tudo.
Argumentei apenas
que precisava te ver,
minha Anna Karina.
Ser morto por ti/contigo
e começar
a viver a vida.


Anna Karina em Vivre sa vie, 1962, Godard.

domingo, 9 de novembro de 2008

Sentido!

Disciplina é o caralho.

Eu que não me rendo
à regra da máxima produtividade.
Eu que não me rendo
à jornada de subordinação.
Eu que não me rendo
ao obedecer do não-pensar.
Eu que não me rendo
ao comum.

Disciplina é o caralho!

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Blecaute

"Apagão deixa país parado"
é a manchete de um jornal
que não pode circular.

"Na falta de energia,
ficamos sem computador,
televisão, geladeira, chuveiro"
continua a matéria.

"Ninguém trabalha, ninguém vive"
vociferam os pais
enquanto os filhos
roubam as suas pantufas
para armar goleiras
numa larga rua do centro.

Sou um menino desses,
feliz no quarto escuro
e grato pelo blecaute
que me poupou de
abandonar teu seio
para apagar a lâmpada.

Fim de tarde

Te vejo assim tão só,
a graciosidade do teu rosto
a desfilar impaciente
pela sala de ar pesado.

Percebo um cabelo cansado,
procurando ganhar o chão
e rastejar até a porta
para chegar às margaridas.

E te vejo assim tão bela
que só resta a certeza
de que a maciez do teu colo
não tem o dono que merece.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Filosofia da cegueira

De que interessam as rimas
e como se pensa o viver
para o pobre homem
que só existe para comer?

Por vezes parece
que a poesia não passa
de pura besteira.
A vida aparece
como infinitos capítulos
de pobreza e cegueira.

Solitudine

Solidão não é algo a se pensar
no banco do fundo de um ônibus.

Ela é o nada presente em tudo,
a eterna companheira
de quem constrói o abandono.

É o estado natural e o final,
o previsível e nem por isso evitável,
a expansão de uma noite no hospital,
a condensação de todo detestável.

O melancólico de um filho que escapa,
o olhar refugiado em um beijo,
a marca de um violento tapa,
o exílio constante do desejo.

Solidão não é algo a se pensar
no banco do fundo de um ônibus.

Do casal apaixonado à direita,
qual partirá primeiro?
qual tomará o amargo café que é estar só?

Do ingênuo casal à esquerda,
qual trairá primeiro?
qual morrerá na ilusão de ter errado?

Solidão não é algo a se pensar
no banco do fundo de um ônibus
porque você pode não querer descer.

Dom Quixano

Somos todos cavaleiros andantes
construindo dulcinéias
e tentando tornar cada encontro
uma aventura inesquecível.

Somos todos solitários errantes
inventando epopéias
e montando destemidos burricos
rumo a castelos de palha.

Declaramos guerra ao real
e temos sede de admiração.
Criamos inimigos tão grandes
quanto a nossa vontade de fugir.

Enfrentamos demoníacos dragões
com viseiras de papelão.
Bebericamos do delírio
para escapar do presente vulgar.

Derrotamos valorosos gigantes,
salvamos nobres donzelas.
A lua anuncia o fim da jornada
e na volta para casa
só algo ainda nos acompanha:
nossa capacidade de sonhar.

Turbilhão

Por que vens, turbilhão,
e levas todos meus papéis?
O sol não te quer bem,
vai à noite, arrasta a seda
e me revela o claro rubi.

A força do teu vento, turbilhão,
deveria sábia também ser.
Se assim fosse,
carregaria seu ímpeto daqui
e marcaria com fúria outro corpo.

És criação de outro ser, turbilhão,
e ele não está aqui.
És obra da menina do rubi,
és castigo pelo que eu não fiz.

Me entenda, turbilhão,
não quero tua companhia.
Na partida de tua dona,
decidi ficar sozinho.

sábado, 1 de novembro de 2008

Em tempos de abóbora

Halloween?

Para mim é um bom exemplo
do convívio harmônico
entre os diferentes.

Bruxas, abóboras e crianças
estão muito felizes hoje.
E, sobretudo, nós
nos afirmamos no posto
de alegres macaquinhos
imitando os seus donos.